“A humanidade permanece irremediavelmente presa dentro da caverna de Platão, regalando-se ainda, como é seu velho hábito, com meras imagens da realidade.”
(Sontag, 1981)
Em meados do Século XIX, em pleno advento da fotografia, os movimentos artísticos estavam no auge do realismo, tendência sincronizada com a ideologia emergente da revolução industrial. Neste contexto, o reconhecimento do autor era determinado não pela sua capacidade de interpretação, mas pela fiel reprodução da verosimilhança da sua obra.
A fotografia trouxe consigo a aura da veracidade e o seu surgimento contribuiu directamente para que todos os segmentos artísticos, literários e intelectuais passassem por uma profunda reflexão, evidenciando um dado importante que até aquele momento permanecera intacto: a concepção que o homem tinha de si próprio. A arte conhece no Renascimento uma verdadeira primavera de conceitos, pois o artista, antes de tudo, teria que ser rigoroso na sua forma de representação. Neste sentido, a câmara escura reproduzia uma nova concepção do mundo, já que a lente tem a propriedade de codificar a realidade captada em perspectiva central.
Desta forma, as três dimensões percebidas pela visão humana são reduzidas em relações de proporção, que se interceptam em um único ponto de fuga. Em outras palavras, a perspectiva central substitui as formas tradicionais por um conceito mais exacto e científico. O mundo ao redor passa a ser compreendido em um contexto mais amplo, de infinito e homogeneidade. A câmara escura - e mais tarde, a própria fotografia - constituía a cristalização da percepção renascentista: uma pequena fenda na escuridão medieval que produzia nova concepção de imagem para o velho mundo europeu. Houve assim um avanço enorme em quase todos os segmentos do conhecimento humano.
Contudo, a sociedade europeia demorou muito tempo para compreender o real valor da produção fotográfica. Em 19 de Agosto de 1939, a Academia Francesa mal anunciava publicamente a invenção do Daguerreótipo e o pintor Paul Delaroche já declarava enfaticamente: “de hoje em diante, a pintura está morta”. (Demachy & Puyo, 1906) Nos círculos mais conservadores e nos meios religiosos da sociedade, “a invenção foi chamada de blasfémia, e Daguerre era condecorado com o título de ‘Idiota dos Idiotas’”. (Demachy & Puyo, 1906) O pintor Ingres, ainda que utilizasse os daguerreótipos de Nadar para executar seus retratos, menosprezava a Fotografia, como sendo apenas um produto industrial, e confidenciava: “a fotografia é melhor do que o desenho, mas não é preciso dizê-lo”. (Freund, 1982)
Baudelaire, um dos mais expressivos representantes da cultura francesa, negava publicamente a fotografia como forma de expressão artística, alegando que “a fotografia não passa de refúgio de todos os pintores frustrados”. Sarcasticamente, celebrava a fotografia “como uma arte absoluta, um Deus vingativo que realiza o desejo do povo”, acrescentando que “Daguerre foi seu Messias” e “uma loucura, um fanatismo se apoderou destes novos adoradores do sol!” (Freund, 1982) Com estas declarações, Baudelaire reflectia o impacto causado pela fotografia na intelectualidade europeia da época. Um artigo publicado num jornal alemão em Agosto de 1839, ajuda a compreender melhor este confronto: “Deus criou o homem à sua imagem e a máquina construída pelo homem não pode fixar a imagem de Deus. É impossível que Deus tenha abandonado seus princípios e permitido a um francês dar ao mundo uma invenção do Diabo” (Leipziger Stadtanzeiger, 26.08.1839)
A nova concepção da realidade conturbou o mundo cultural e artístico europeu. Como entender que a fotografia viesse para ficar, a não ser em substituição das tradicionais formas de representação? Segundo o filósofo Walter Benjamin “já se haviam gasto vãs subtilezas em decidir se a fotografia era ou não arte mas, preliminarmente, ainda não se perguntara se esta descoberta não transformava a natureza geral da arte”.(Freund, 1982)
Se, por um lado, o advento da fotografia deu ampla continuidade à sintaxe visual renascentista (perspectiva central e uni ocular que convergem para um único ponto de fuga), substituindo a tela de pintura da câmara escura por um suporte fotossensível, por outro lado, esta nova descoberta evidenciou a importância da luz e da sombra na representação visual. Neste contexto, não é difícil compreender que os pintores impressionistas franceses, em especial Renoir, um dos mais populares deste movimento, tenham sobrevalorizado o efeito da luz em detrimento do registo meramente pictórico.
O surgimento da fotografia fez com que a pintura procurasse outras formas de interpretação, sob pena de se tornar uma espécie de segunda via fatal. Assim, a pintura sentiu-se obrigada a produzir imagens que a câmara fotográfica da sua época, devido às suas características, limitações técnicas e falta de movimentos, não conseguia registar. Pode-se comprovar este facto nos trabalhos de pintores deste período, nomeadamente de Manet e Toulouse Lautrec, pela preferência dos mesmos por cenas de interiores e de movimento. Outro ponto também importante desta questão é o exame da objectividade fotográfica. Embora admitindo que a fotografia regista a realidade com perfeição, não se pode esquecer que este registo é uma redução de três para duas dimensões e que a fotografia trabalha essencialmente com a abstracção da cor, já que o filme fotográfico possui uma sensibilidade cromática própria, ou seja, percebe as cores de outra maneira em relação ao olho humano.
Apesar dos grandes avanços tecnológicos, ainda não se pode atribuir à cor uma fidelidade absoluta. Por outro lado, a percepção visual, ao contrário da câmara, é subjectiva e selectiva. O olho, associado à mente, salienta certos pormenores e despreza outros. A fotografia perfeita, muitas vezes, surpreende por captar mais do que se pretendia, podendo também decepcionar, na medida em que a própria memória ilude. Estas consequências, geradas por processos mecânicos, contrapõem-se ao modo de ver. As respectivas limitações, são, na realidade, pontos de partida para consciencialização da criação artística - sempre subjectiva como a nossa percepção - e que reflectem o carácter pessoal de cada artista, não se deixando dominar pela imagem mecanicamente obtida.
Vale a pena recordar que a fotografia nasceu com carácter puramente pictórico, talvez devido ao facto dos primeiros fotógrafos serem quase todos pintores. O discurso pictórico, portanto, já fazia parte dos valores estéticos da sociedade da época, sendo acessível e de fácil compreensão por todos. Apesar de trabalhoso, o ritual técnico fotográfico era bastante simples, podendo ser manipulado por qualquer interessado, o que o tornou muito popular desde o início.
O pictorialismo e outros movimentos artísticos semelhantes não foram, portanto, mais que tentativas de algumas elites progressistas em resgatar o prestígio que a Fotografia havia perdido em decorrência da sua popularidade. Os primeiros retratos foram extensões de poses já transcritas pela pintura. Os gestos da corte francesa, por exemplo, foram finalmente socializados, pois embora a nobreza fosse uma clientela difícil, exigia um trabalho perfeito. Com o objectivo de satisfazer o gosto da época, o pintor tinha de evitar as cores reais e substitui-las por tons mais delicados; a tela, por outro lado, deveria ser de um relevo apropriado para reproduzir melhor a superfície da seda e de outros tecidos.
Mesmo os teóricos, como Walter Benjamin, consideraram a imagem fotográfica como um desenvolvimento da pintura renascentista mediada pelo uso da câmara escura. Para o burguês, representar-se era mais do que uma simples identificação pessoal, era um culto de classe ao individualismo que a filosofia cartesiana exprimia com “eu penso, logo existo”, e nada é tão cartesiano quanto o instante fotográfico - o “eu penso” só pode acontecer na revelação de um instante. O retrato fotográfico corresponde, assim, a uma fase particular da evolução social: a ascensão de novas classes sociais tinha um significado político e social. Os precursores do retrato fotográfico surgiram em estreita relação com esta evolução. O “deixar-se fotografar”, privilégio de poucos durante vários séculos, passava agora por um processo irreversível de democratização.
O pictorialismo na fotografia nasceu numa época em que as artes plásticas e a literatura passavam por uma série de mudanças, com proclamações e manifestos de diferentes “ismos”. Influenciado, por um lado, pelas tomadas de posição, e por outro pela fotografia estar a atravessar um hiato - com a maioria dos profissionais se repetindo dentro dos mesmos moldes, sobretudo de ordem estética – ou ainda para conquistar determinado prestígio social, já que a sua presença na época não era vista com bons olhos.
Durante a Iª Exposição do Impressionismo, em Paris/1880, George Davidson declarou que “a fotografia suave é mais bela em relação a uma nítida”. Também outros fotógrafos não se conformavam em ver a fotografia “apenas como um instrumento” para registrar a realidade. Como não conseguiam obter os resultados desejados pela simples aplicação dos processos tradicionais, os adeptos deste movimento começaram a desenvolver novas técnicas baseadas numa grande variedade de recursos, principalmente químicos. Além destes recursos, utilizaram ainda outros métodos, com o pincel, a espátula e a borracha, na manipulação dos negativos, com o propósito de alterar os valores tonais, suprimir ou acrescentar detalhes, intensificar claros e escuros, e assim por diante. As objectivas, por outro lado, foram reestudadas, com o intuito de se obter uma melhor qualidade de imagem e um foco mais suave.
Estes resultados passaram a descaracterizar a fotografia enquanto essência e a aproximá-la ainda mais da pintura, o que causou ainda mais críticas. O movimento passou a ser acusado de utilizar métodos que desvirtuaram a fotografia tradicional como meio de registro da realidade e, ainda hoje, há teóricos que afirmam que o pictorialismo atrasou o desenvolvimento da fotografia. Por outro lado, os fotógrafos mais interessados na simples documentação do quotidiano, deram continuidade aos seus trabalhos sem a utilização destes artifícios, como Eugene Atget, e tantos outros, que determinaram as bases da fotografia moderna.
Contudo, o ponto mais simples desta questão não foi observado nem pelos artistas e muito menos pelos pintores da época, pelo que merece ser retomado. Antes da fotografia ser classificada como “instrumento de registo da realidade”, a câmara escura - e mais tarde a sua sucessora natural, a câmara fotográfica - já havia alterado radicalmente as representações visuais tradicionais, através das mudanças nas perspectivas e dos cortes abruptos (presentes nas obras de muitos pintores do período renascentista como Michelangelo e Rubens) da fiel transcrição do eixo óptico da objectiva.
Mas ainda no tempo do daguerreotipo, o pintor Paul Delaroche, em resposta ao valor da Fotografia para o artista, afirmou que “este processo satisfaz plenamente todas as necessidades do artista”.(Brill, 1977) Nessa época, conforme já analisámos, os retratos fotográficos eram mera versão do retrato pintado, de “tendência académica”. Ainda não se havia permitido à fotografia, como hoje se permite à televisão, ter uma “vida própria”, e esta postura era estimulada em função do grande tamanho dos equipamentos, e da “lentidão” dos materiais sensíveis, que dificultavam a captação de imagens de objectos e de seres vivos em movimento. Percebe-se então porque, mais tarde, a possibilidade de registar o instantâneo, em fracções de segundo, contribuiu directamente para a arte do retrato fotográfico, como testemunham os trabalhos de Man Ray, August Sander e outros, que também ajudaram a incorporá-la na indústria cultural emergente, e permitiu à fotografia conquistar progressivamente seus meios específicos de expressão.
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